Seis meses de Estados Unidos.
Nunca antes tinha passado tanto tempo fora do que eu sempre chamei de casa. É
engraçado como aquilo que te é tão estranho no começo aos poucos se dissolve em
realidade, se tornando o que você então chamará de casa. Sempre que saio de
Logan, a minha atual cidade, sinto que é uma delícia viajar. Falo mal da falta
de opções de Logan, da pouca diversidade, do frio, do conservadorismo... mas
quando o ônibus volta e começa a entrar nas montanhas do Canyon, quando reconheço o primeiro comércio se aproximando,
respiro fundo aliviado: é bom estar em casa,
finalmente.
Paguei caro para estar aqui. Não me
refiro diretamente à la plata, l’argent, the money. Abri mão de muitas
raízes que Brasília me oferecia poucos meses antes de decidir embarcar. Um
emprego público, uma jornada de trabalho mais branda, um salário melhor,
quinhentos alunos que me conquistaram, o contato quase que diário com meus
amigos, as delícias de uma relação nova criando cara e se firmando, as delícias
de amar Brasília e as árvores da W3, a Esplanada em momentos vazios, patins no
Parque da Cidade, festas e bares que já bem me conheciam e conversas cansadas
com meu irmão no fim da noite.
Seis meses longe disso. E agora
me perguntam se valeu a pena, se valeu a pena a longo prazo. Se eu já tenho
tudo resolvido, se os ares de Logan cessaram finalmente as minhas dúvidas
profissionais, se eu vou investir num mestrado aqui, em São Paulo ou Brasília. Se
terei melhores empregos com um currículo de respaldo, se ganharei mais. O que
farei dessa experiência, afinal, me perguntam em coro. Talvez as vozes da minha
cabeça me perguntem mais do que esses meus queridos, mas o eco ressoa de algum
lugar todos os dias. Então tentarei responder.
Não, os ares de Logan não
preencheram as dúvidas que me foram geradas numa vida em Brasília. Uma vida em
outro país não me foi suficiente para ter tudo resolvido pelos próximos cinco,
dez ou quinze anos. Volto para a minha primeira casa em poucos meses sem pista
alguma do que farei, do que serei ou por onde andarei.
E pela primeira vez na vida não
acho isso desesperador. Acho, na verdade, uma delícia. Esta que tem sido a
minha casa não me mudou para sempre. Não me transformou. Mas preencheu espaços
que me acompanharão para o resto de uma vida.
Estar longe tem me ensinado muito
sobre a fragilidade das coisas. Das palavras. Foram muitas as palavras nesses
meses que mudaram a maneira como encaro as coisas. Elas podem significar tudo
ou nada. E ainda que você as saiba manejar bem, como eu sei que sei, outros
também o sabem. Disse às pessoas mais importantes da minha vida o que precisava
ser dito. Cresci achando que o meu grande problema era dizer. Aqui, aprendi que
se pode dizer qualquer coisa. Acreditar no que é dito é um ato de fé,
entretanto. E há pouca fé nesses dias. Então diz-se o que se quer; faz-se o que
se quer também. Faz-se o que se quer do que é dito e às vezes o que escolhemos
fazer é não fazer nada. Ou dizer algo de volta, porque é isso que nos é
esperado. Então digo. E escrevo. Ainda sou tecido mais de palavras do que de
fé, então escrevo.
Fé. Utah é um estado de fé. Fé em
uma religião que eu nada sabia e agora compreendo um pouco. Compreendo um pouco
do que é ser um outsider numa
comunidade com valores tão diferentes dos meus. Mas viver num ambiente noventa
por cento Mórmon me lembrou daquilo que mais gosto na antropologia: é preciso
não só se familiarizar com o estranho, mas estranhar o familiar. E como me
senti um estranho com a minha cultura e valores (que pouco devem à
religião...)! Mas, sim, fé. Eu poderia escrever um ensaio inteiro sobre o que
aprendi sobre A Igreja de Jesus Cristo
dos Santos dos Últimos Dias. Sobre as coisas que eu julgo funcionar, sobre
o que me parece belo e sobre as suas contradições, para mim, tão absurdas. Mas
falarei apenas de uma coisa: as missões.
Por volta dos dezoito anos, muitos
jovens vão à missões em lugares diferentes do da sua residência para promover a
fé. Ficam dois anos imersos na religião em algum canto do mundo. Muitos vão ao
exterior. Eles não sabem para onde serão mandados quando se inscrevem. E assim
alguns vão para a Coréia do Sul, outros para a Finlândia, outros para a Rússia,
outros para a Espanha, outros para o Brasil. Muitos para o Brasil. Não
interessa a qual parte do mundo eles sejam enviados: estarão mais imersos na religião
em si do que em sua nova casa. Não podem experienciar a cultura desses lugares
a fundo. Suas rotinas começam às seis da manhã e terminam muitas vezes às nove
da noite, todos os dias durante dois anos, com uma folga nas segundas-feiras à
tarde, entre estudos bíblicos, estudos da língua, promoção da fé nas ruas e
visita à casa das pessoas. Sem fôlego como a última sentença.
Mas há um crédito que precisa ser
dado à Igreja: esses jovens voltam fluentíssimos na língua da comunidade em que
ficaram. O contato diário com material já conhecido em outra língua, com
pessoas das mais diversas camadas sociais, com colegas estrangeiros mais
fluentes que também batalham na nova comunidade... tudo isso faz com que o seu
domínio da segunda língua volte impecável. Im-pe-cá-vel. Me espanto às vezes
com a quantidade de americanos falando português fluentemente no campus.
Conheço várias pessoas que moraram dois anos em outros países. Conheço
estrangeiros que moraram no Brasil por quatro, cinco anos. E a precisão e
fluência em seu domínio do português pouco pode ser comparada à adquirida por
esses missionários.
Tentei várias vezes entender um
pouco mais sobre como esse aprendizado ocorre. Muitos dizem que foi natural,
que foi o contato diário. Mas a resposta que mais recebo é: fé. É uma obra de Deus mesmo. Como se a língua
deixasse de ser uma barreira. E mais uma vez esbarro em palavras, portanto.
No poder das palavras. Também, quando os questionava sobre as peculiaridades do
Brasil, poucos sabiam mais sobre a nossa cultura para além da língua e da
comida. O acesso ao cinema, à música, à diversão, enfim, lhes é negado por
esses dois anos. Um missionário na Jamaica tem uma experiência muito parecida
com um missionário no Japão, por exemplo. Quando lhes questionava, então, o que
achavam disso, recebi certa vez uma resposta muito espontânea. Tão espontânea e
forte às três da tarde de uma quinta-feira: cara,
não existe nada igual. É difícil, mas você volta com uma coisa... uma coisa que
eu não sei explicar. Você aprende a amar as pessoas.
Quando me perguntam sobre o que estou
fazendo aqui, brinco dizendo que também estou numa missão. Uma missão para promover a cultura brasileira e a língua
portuguesa por um ano num campus universitário americano. Me pergunto, portanto,
se a minha missão tem me ensinado a amar as pessoas (como se não houvesse
amanhã?). E, com vergonha, admito que ainda não aprendi a amar o mendigo na rua
como a amar mais os que estão longe de mim. Ou a uma porção de gente nova que
conheci enquanto embaixador cultural, ou melhor, missionário.
Aprendi a amar a França, o Irã, a
Armênia e a República Dominicana. Países sobre os quais eu sabia quase nada ou
nada, mas que agora preenchem o meu coração de curiosidade e saudade
antecipada. Conheci pessoas fantásticas do mundo inteiro, mas o meu convívio
mais diário acaba sendo mais com os filhos dessas terras espalhadas do que desta
que agora chamo de casa. Aprendi, por exemplo, que na Armênia eles sabem quem é
Jade e Lucas e sobre a trajetória meia-boca de Sol para chegar à América.
Nossas novelas e nossas músicas chegam lá. O que chega da Armênia até nós?
Aprendi que álcool é completamente ilegal no Irã, mas que você pode consegui-lo
a qualquer hora. E que os jovens normalmente se esforçam para isso. Meu coração
se cortou quando ouvi do meu amigo que ele disse à sua família que talvez
ficasse cinco anos sem voltar para casa. E já lá se vão três. Aprendi que na
França, em janeiro, eles colocam um bonequinho (de chumbo, talvez?) dentro do
bolo, e que quem pegar a fatia com ele tem sorte.
Cruzei o país e muitas cidades dele.
De carro, de avião, de trem, de bicicleta, a pé. Bebi cerveja artesanal em
Boulder, celebrei um Thanksgiving
verdadeiramente hippie em Denver, no Colorado. Cruzei a Golden Gate de
bicicleta e depois cruzei de novo, desesperado por ter perdido a balsa e ficado
preso num lugar escuro com veados e cobras. Vi novamente a capital do mundo,
mas agora de um novo topo. Apresentei uma versão improvisada de Frevo para
outras cinquenta nacionalidades em D.C.. Respirei novamente os ares de uma
cidade que, sim, me mudou para sempre. A brisa de Atlantic City com as luzes de
seus cassinos luxuosos fecharam feridas de uma vida. Fiz guerra de neve e me
apaixonei por Boston. Contemplei o concreto da Filadélfia mais uma vez. E muito
disso vivenciado ao lado de alguém que pararia sua vida por mim. E que parou. Descobri por acidente uma praia em Chicago e mudei os planos do dia para nela ficar. Relaxei com uma cerveja na mão dentro de uma piscina natural de água quente em Idaho. Andei
uns vinte quarteirões sozinho em Salt Lake City e lá fiz amigos para uma vida.
Já a tenho no coração junto com Logan.
Em Logan vi neve pesada. Ganhei
uma bicicleta retrô e me apaixonei por ela. Passeamos juntos por alguns dos
cenários mais bonitos que já vi. E ganhei um escritório com uma vista linda
para o campus. E alunos interessadíssimos na minha língua nativa. E com os
erros mais gostosos: eu estudo às
primeiras-feiras. O furor do Halloween: eu estava lá. Como Alex, do Laranja Mecânica. Andei numa
garupa de moto à lua cheia. E também à lua cheia fiz uma trilha para a Caverna
do Vento. Dirigi um jipe. Aprendi a cozinhar. Aprendi a cortar meu cabelo
sozinho. Me tornei vegetariano. Apresentei a essa hermeticidade as doçuras do
beijinho de côco, do brigadeiro e da paçoca. E também das caipirinhas.
Logan comprou um espaço todo novo
no meu coração. Espaço grande, com cobertura e área de lazer. Outros também
responderam aos seus anúncios imobiliários. Minas Gerais, São Paulo, Rio de
Janeiro e Paraná compraram lotes grandes nele. Sergipe e Santa Catarina ampliaram suas já antigas propriedades. Uma gente bonita que levarei para a vida foi fabricada nesses estados. E como sou feliz de tê-los
conhecido.
Aqui perdi o medo de cemitérios.
Tem um atrás da vila onde moro, passo por ele quase todos os dias para chegar
ao campus. Algumas das minhas fotos mais bonitas vêm de lá. Verão, outono e
inverno. A vida se manifestando tão bonitamente num lugar que deveria ser
triste. E é. O adeus é sempre triste. As folhas caídas do outono virando
matéria orgânica. Nós mesmos virando matéria orgânica. Tudo muda. Tudo muda tão
obviamente diante de nosso nariz e o que mais almejamos é que as coisas sejam
estáveis. Que pessoas, lugares, rotinas e sentimentos não mudem.
Mas mudam. Mas mudam, Brasília. E
por isso, sim, valeu a pena. A curto, médio e longo prazo, valeu a pena ficar
longe de você. Outras possibilidades de existência são possíveis para além do
que você nos vende diariamente. Descobrir dentro de si mesmo um universo de
possibilidades inquietantes é privilégio de poucos. Tenho a sorte de ser um deles.
Que venha a segunda parte antes de voltar para você, minha primeira e mais
verdadeira casa.
Um comentário:
O bom de ser professor é plantar a semente do conhecimento no local certo. Esperá-la germinar e, sem pretensão nenhuma, alcançar o reconhecimento das nossas próprias experiências. Isso sim é ter fé, rsrsrs.
Parabéns pelos sempre queridos textos. Um professor algemado num fazer excelente é o que cê está se tornando... Me orgulho de ter sido sua aluna =DD
Jake.
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