segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Seis meses de EUA: sobre palavras, fé e o que vale a pena

Seis meses de Estados Unidos. Nunca antes tinha passado tanto tempo fora do que eu sempre chamei de casa. É engraçado como aquilo que te é tão estranho no começo aos poucos se dissolve em realidade, se tornando o que você então chamará de casa. Sempre que saio de Logan, a minha atual cidade, sinto que é uma delícia viajar. Falo mal da falta de opções de Logan, da pouca diversidade, do frio, do conservadorismo... mas quando o ônibus volta e começa a entrar nas montanhas do Canyon, quando reconheço o primeiro comércio se aproximando, respiro fundo aliviado: é bom estar em casa, finalmente.

Paguei caro para estar aqui. Não me refiro diretamente à la plata, l’argent, the money. Abri mão de muitas raízes que Brasília me oferecia poucos meses antes de decidir embarcar. Um emprego público, uma jornada de trabalho mais branda, um salário melhor, quinhentos alunos que me conquistaram, o contato quase que diário com meus amigos, as delícias de uma relação nova criando cara e se firmando, as delícias de amar Brasília e as árvores da W3, a Esplanada em momentos vazios, patins no Parque da Cidade, festas e bares que já bem me conheciam e conversas cansadas com meu irmão no fim da noite.

Seis meses longe disso. E agora me perguntam se valeu a pena, se valeu a pena a longo prazo. Se eu já tenho tudo resolvido, se os ares de Logan cessaram finalmente as minhas dúvidas profissionais, se eu vou investir num mestrado aqui, em São Paulo ou Brasília. Se terei melhores empregos com um currículo de respaldo, se ganharei mais. O que farei dessa experiência, afinal, me perguntam em coro. Talvez as vozes da minha cabeça me perguntem mais do que esses meus queridos, mas o eco ressoa de algum lugar todos os dias. Então tentarei responder.

Não, os ares de Logan não preencheram as dúvidas que me foram geradas numa vida em Brasília. Uma vida em outro país não me foi suficiente para ter tudo resolvido pelos próximos cinco, dez ou quinze anos. Volto para a minha primeira casa em poucos meses sem pista alguma do que farei, do que serei ou por onde andarei.

E pela primeira vez na vida não acho isso desesperador. Acho, na verdade, uma delícia. Esta que tem sido a minha casa não me mudou para sempre. Não me transformou. Mas preencheu espaços que me acompanharão para o resto de uma vida.

Estar longe tem me ensinado muito sobre a fragilidade das coisas. Das palavras. Foram muitas as palavras nesses meses que mudaram a maneira como encaro as coisas. Elas podem significar tudo ou nada. E ainda que você as saiba manejar bem, como eu sei que sei, outros também o sabem. Disse às pessoas mais importantes da minha vida o que precisava ser dito. Cresci achando que o meu grande problema era dizer. Aqui, aprendi que se pode dizer qualquer coisa. Acreditar no que é dito é um ato de fé, entretanto. E há pouca fé nesses dias. Então diz-se o que se quer; faz-se o que se quer também. Faz-se o que se quer do que é dito e às vezes o que escolhemos fazer é não fazer nada. Ou dizer algo de volta, porque é isso que nos é esperado. Então digo. E escrevo. Ainda sou tecido mais de palavras do que de fé, então escrevo.

Fé. Utah é um estado de fé. Fé em uma religião que eu nada sabia e agora compreendo um pouco. Compreendo um pouco do que é ser um outsider numa comunidade com valores tão diferentes dos meus. Mas viver num ambiente noventa por cento Mórmon me lembrou daquilo que mais gosto na antropologia: é preciso não só se familiarizar com o estranho, mas estranhar o familiar. E como me senti um estranho com a minha cultura e valores (que pouco devem à religião...)! Mas, sim, fé. Eu poderia escrever um ensaio inteiro sobre o que aprendi sobre A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Sobre as coisas que eu julgo funcionar, sobre o que me parece belo e sobre as suas contradições, para mim, tão absurdas. Mas falarei apenas de uma coisa: as missões.

Por volta dos dezoito anos, muitos jovens vão à missões em lugares diferentes do da sua residência para promover a fé. Ficam dois anos imersos na religião em algum canto do mundo. Muitos vão ao exterior. Eles não sabem para onde serão mandados quando se inscrevem. E assim alguns vão para a Coréia do Sul, outros para a Finlândia, outros para a Rússia, outros para a Espanha, outros para o Brasil. Muitos para o Brasil. Não interessa a qual parte do mundo eles sejam enviados: estarão mais imersos na religião em si do que em sua nova casa. Não podem experienciar a cultura desses lugares a fundo. Suas rotinas começam às seis da manhã e terminam muitas vezes às nove da noite, todos os dias durante dois anos, com uma folga nas segundas-feiras à tarde, entre estudos bíblicos, estudos da língua, promoção da fé nas ruas e visita à casa das pessoas. Sem fôlego como a última sentença.

Mas há um crédito que precisa ser dado à Igreja: esses jovens voltam fluentíssimos na língua da comunidade em que ficaram. O contato diário com material já conhecido em outra língua, com pessoas das mais diversas camadas sociais, com colegas estrangeiros mais fluentes que também batalham na nova comunidade... tudo isso faz com que o seu domínio da segunda língua volte impecável. Im-pe-cá-vel. Me espanto às vezes com a quantidade de americanos falando português fluentemente no campus. Conheço várias pessoas que moraram dois anos em outros países. Conheço estrangeiros que moraram no Brasil por quatro, cinco anos. E a precisão e fluência em seu domínio do português pouco pode ser comparada à adquirida por esses missionários.

Tentei várias vezes entender um pouco mais sobre como esse aprendizado ocorre. Muitos dizem que foi natural, que foi o contato diário. Mas a resposta que mais recebo é: fé. É uma obra de Deus mesmo. Como se a língua deixasse de ser uma barreira. E mais uma vez esbarro em palavras, portanto. No poder das palavras. Também, quando os questionava sobre as peculiaridades do Brasil, poucos sabiam mais sobre a nossa cultura para além da língua e da comida. O acesso ao cinema, à música, à diversão, enfim, lhes é negado por esses dois anos. Um missionário na Jamaica tem uma experiência muito parecida com um missionário no Japão, por exemplo. Quando lhes questionava, então, o que achavam disso, recebi certa vez uma resposta muito espontânea. Tão espontânea e forte às três da tarde de uma quinta-feira: cara, não existe nada igual. É difícil, mas você volta com uma coisa... uma coisa que eu não sei explicar. Você aprende a amar as pessoas.

Quando me perguntam sobre o que estou fazendo aqui, brinco dizendo que também estou numa missão. Uma missão para promover a cultura brasileira e a língua portuguesa por um ano num campus universitário americano. Me pergunto, portanto, se a minha missão tem me ensinado a amar as pessoas (como se não houvesse amanhã?). E, com vergonha, admito que ainda não aprendi a amar o mendigo na rua como a amar mais os que estão longe de mim. Ou a uma porção de gente nova que conheci enquanto embaixador cultural, ou melhor, missionário.

Aprendi a amar a França, o Irã, a Armênia e a República Dominicana. Países sobre os quais eu sabia quase nada ou nada, mas que agora preenchem o meu coração de curiosidade e saudade antecipada. Conheci pessoas fantásticas do mundo inteiro, mas o meu convívio mais diário acaba sendo mais com os filhos dessas terras espalhadas do que desta que agora chamo de casa. Aprendi, por exemplo, que na Armênia eles sabem quem é Jade e Lucas e sobre a trajetória meia-boca de Sol para chegar à América. Nossas novelas e nossas músicas chegam lá. O que chega da Armênia até nós? Aprendi que álcool é completamente ilegal no Irã, mas que você pode consegui-lo a qualquer hora. E que os jovens normalmente se esforçam para isso. Meu coração se cortou quando ouvi do meu amigo que ele disse à sua família que talvez ficasse cinco anos sem voltar para casa. E já lá se vão três. Aprendi que na França, em janeiro, eles colocam um bonequinho (de chumbo, talvez?) dentro do bolo, e que quem pegar a fatia com ele tem sorte.

Cruzei o país e muitas cidades dele. De carro, de avião, de trem, de bicicleta, a pé. Bebi cerveja artesanal em Boulder, celebrei um Thanksgiving verdadeiramente hippie em Denver, no Colorado. Cruzei a Golden Gate de bicicleta e depois cruzei de novo, desesperado por ter perdido a balsa e ficado preso num lugar escuro com veados e cobras. Vi novamente a capital do mundo, mas agora de um novo topo. Apresentei uma versão improvisada de Frevo para outras cinquenta nacionalidades em D.C.. Respirei novamente os ares de uma cidade que, sim, me mudou para sempre. A brisa de Atlantic City com as luzes de seus cassinos luxuosos fecharam feridas de uma vida. Fiz guerra de neve e me apaixonei por Boston. Contemplei o concreto da Filadélfia mais uma vez. E muito disso vivenciado ao lado de alguém que pararia sua vida por mim. E que parou. Descobri por acidente uma praia em Chicago e mudei os planos do dia para nela ficar. Relaxei com uma cerveja na mão dentro de uma piscina natural de água quente em Idaho. Andei uns vinte quarteirões sozinho em Salt Lake City e lá fiz amigos para uma vida. Já a tenho no coração junto com Logan.

Em Logan vi neve pesada. Ganhei uma bicicleta retrô e me apaixonei por ela. Passeamos juntos por alguns dos cenários mais bonitos que já vi. E ganhei um escritório com uma vista linda para o campus. E alunos interessadíssimos na minha língua nativa. E com os erros mais gostosos: eu estudo às primeiras-feiras. O furor do Halloween: eu estava lá. Como Alex, do Laranja Mecânica. Andei numa garupa de moto à lua cheia. E também à lua cheia fiz uma trilha para a Caverna do Vento. Dirigi um jipe. Aprendi a cozinhar. Aprendi a cortar meu cabelo sozinho. Me tornei vegetariano. Apresentei a essa hermeticidade as doçuras do beijinho de côco, do brigadeiro e da paçoca. E também das caipirinhas.

Logan comprou um espaço todo novo no meu coração. Espaço grande, com cobertura e área de lazer. Outros também responderam aos seus anúncios imobiliários. Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná compraram lotes grandes nele. Sergipe e Santa Catarina ampliaram suas já antigas propriedades. Uma gente bonita que levarei para a vida foi fabricada nesses estados. E como sou feliz de tê-los conhecido.

Aqui perdi o medo de cemitérios. Tem um atrás da vila onde moro, passo por ele quase todos os dias para chegar ao campus. Algumas das minhas fotos mais bonitas vêm de lá. Verão, outono e inverno. A vida se manifestando tão bonitamente num lugar que deveria ser triste. E é. O adeus é sempre triste. As folhas caídas do outono virando matéria orgânica. Nós mesmos virando matéria orgânica. Tudo muda. Tudo muda tão obviamente diante de nosso nariz e o que mais almejamos é que as coisas sejam estáveis. Que pessoas, lugares, rotinas e sentimentos não mudem.

Mas mudam. Mas mudam, Brasília. E por isso, sim, valeu a pena. A curto, médio e longo prazo, valeu a pena ficar longe de você. Outras possibilidades de existência são possíveis para além do que você nos vende diariamente. Descobrir dentro de si mesmo um universo de possibilidades inquietantes é privilégio de poucos. Tenho a sorte de ser um deles. Que venha a segunda parte antes de voltar para você, minha primeira e mais verdadeira casa.


Um comentário:

Anônimo disse...

O bom de ser professor é plantar a semente do conhecimento no local certo. Esperá-la germinar e, sem pretensão nenhuma, alcançar o reconhecimento das nossas próprias experiências. Isso sim é ter fé, rsrsrs.

Parabéns pelos sempre queridos textos. Um professor algemado num fazer excelente é o que cê está se tornando... Me orgulho de ter sido sua aluna =DD

Jake.